Ministério Público Federal representou, junto ao Tribunal de Justiça do Acre, contra a lei sancionada pelo prefeito Tião Bocalom no último dia 11. Documento também foi encaminhado ao Ministério Público Estadual. Bíblia deve ser disponibilizada de forma facultativa nas escolas de Rio Branco
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Mais de uma semana após o prefeito Tião Bocalom sancionar a lei que ‘autoriza’ a disponibilização da bíblia cristã nas bibliotecas nas escolas públicas e particulares de Rio Branco, o Ministério Público Federal no Acre (MPF-AC) entrou com uma representação de inconstitucionalidade da lei.
O documento foi encaminhado para o Tribunal de Justiça do Acre (TJ-AC) e à procuradoria-geral de Justiça do Ministério Público Estadual (MP-AC).
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“A laicidade do Estado requer uma necessária equidistância entre este e qualquer religião, mesmo a predominante na sociedade. Assim, a legislação em análise, apesar de parecer apresentar um tratamento neutro, acaba por contribuir para a promoção de um conjunto de crenças em específico, como se mesmo laico, o Estado tratasse a religião cristã como “primeira entre iguais”; situação inconstitucional, por desrespeito a igualdade material”, diz parte do documento.
Prefeito sancionou projeto durante solenidade em Rio Branco
Marcos Araújo/Assecom
De autoria do vereador Arnaldo Barros (Podemos), o projeto foi sancionado pela Câmara de Vereadores no dia 23 de outubro e virou lei no último 11. À época da aprovação na Câmara, a Secretaria Municipal de Educação (Seme) disse ao g1 que não há qualquer tipo de proibição ou restrição a livros religiosos nas escolas municipais. (Veja mais abaixo)
O texto defende a disponibilização do livro religioso para consulta facultativa de alunos e é uma versão alterada de um projeto semelhante, também de autoria do vereador apresentado em julho deste ano.
Na época, o MP-AC recomendou à prefeitura que vetasse a lei caso chegasse à mesa do prefeito Tião Bocalom (PL) por ser inconstitucional. (Entenda melhor mais abaixo)
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Inconstitucionalidade
Ainda na representação, o procurador da República Lucas Costa Almeida Dias destaca que, com o uso do livro sagrado, os educadores podem ‘catequizar’ crianças e adolescentes ‘em fase de formação e extremamente suscetíveis às opiniões de autoridades e colegas’ com os textos bíblicos.
“No ensino religioso, justamente pelo seu caráter confessional, é natural que o docente tenha a liberdade de defender sua visão de mundo e os valores da fé. É exatamente por esse caráter que as aulas de ensino religioso devem ser explícitas na informação de que são confessionais em seu conteúdo, para então poderem ser realmente facultativas”, pontua.
O MPF-AC também critica a justificativa da lei quando aponta que a bíblia, além de ser um livro sagrado para muitas religiões, é uma obra de significativo literário, histórico e cultural e que sua leitura pode contribuir para a formação integral dos alunos, ‘promovendo o desenvolvimento de valores éticos, morais e culturais’.
O procurador argumenta ‘ainda que o objetivo explícito seja o ensinamento dos valores éticos, morais e culturais, eles serão indissociáveis do próprio discurso religioso que permeia o texto. Não há na lei nenhuma menção à leitura crítica. A tentativa de repassar a alguém os valores éticos, morais e culturais de uma doutrina religiosa é análogo à própria definição de proselitismo’.
Outro ponto ressaltado no documento é de que o ensino religioso nas escolas é facultativo e constitucional, porém, ‘o que não se admite é misturar o ensino de disciplinas como história/filosofia/sociologia etc, com repassar de valores de uma fé específica’.
“Essa burla torna o ensinamento pedagógico em algo de caráter confessional, indiferenciado do proselitismo”, diz.
Texto da lei aprovada
“A utilização da bíblia como recurso facultativo, por meio de consulta nas bibliotecas municipais, terá como objetivo exclusivo o enriquecimento do aprendizado dos alunos, contribuindo para o desenvolvimento de valores éticos, morais e culturais”, afirma o parágrafo segundo do texto aprovado.
Ainda segundo o projeto, a utilização da Bíblia será opcional mediante autorização prévia dos responsáveis legais. Além disso, o texto determina que o recurso seja aplicado como ferramenta educacional, sem “proselitismo religioso”.
Na sessão que aprovou o PLO, o parlamentar declarou que o projeto vai mudar a história da capital acreana.
“Esse é um momento muito nobre, porque esta casa está aprovando um projeto que traz oportunidades para que nossos filhos, adolescentes nas salas de aula, ouçam falar do livro dos livros, que é a Bíblia nas escolas. Projeto esse que vai ser sancionado pelo prefeito Bocalom, e esta casa está de parabéns, esta casa é feita de homens nobres, mulheres nobres, e cremos que este projeto vai mudar a história da nação rio-branquense [sic], disse.
Projeto inconstitucional
O primeiro projeto elaborado por Barros tratava sobre a leitura da Bíblia como “recurso paradidático”, que seria facultativa, e poderia ser feita durante as aulas. O texto original não mencionava a disponibilização da Bíblia nas bibliotecas escolares.
“Art. 4º As atividades de leitura da Bíblia deverão ser desenvolvidas de maneira interdisciplinar, podendo ser incluídas em disciplinas como Língua Portuguesa, História, Filosofia, Sociologia, entre outras”, afirma o texto anterior.
Este projeto foi apresentado no dia 12 de julho. No Diário Eletrônico do MP do dia 18 daquele mês, o promotor de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania, Thalles Ferreira Costa, emitiu uma recomendação ao prefeito Bocalom para que vetasse o texto, caso fosse aprovado.
Costa argumentou que privilegiar um livro religioso ignora o pluralismo presente na sociedade brasileira, e que a Constituição prevê que a função da República é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação.
A base legal utilizada pelo promotor considera que o projeto é inconstitucional, conforme a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5256.
Nesta ação, o Supremo Tribunal Federal (STF) “declarou inconstitucionais dispositivos de Lei de Mato Grosso do Sul que tornaram obrigatória a manutenção de exemplares da Bíblia nas escolas da rede estadual de ensino e nas bibliotecas públicas, às custas dos cofres públicos, desprestigiando as demais denominações religiosas e os que não professam nenhuma crença”, ressaltou o promotor.
Resposta da Secretaria Municipal de Educação
1. Não existem regras. Porém, o Programa Nacional do Livro Didático- PNLD do Ministério da Educação- MEC tem a sua política de distribuição de livros e outros materiais educacionais que complementam o trabalho pedagógico do professor.
2. Considerando as etapas do ensino que a Secretaria Municipal de Educação atende, não se trabalha com Bibliotecas, no entanto, algumas unidades possuem as Salas de Leitura e/ou salas de Multimeios. Nesses espaços, como em outros da escola, não há proibição ou restrição da presença de Bíblias.
3. O trabalho com a leitura de qualquer componente curricular se dá a partir do planejamento do professor, de acordo com o Currículo de Referência Único do Estado do Acre. Desta forma, o componente curricular Ensino Religioso trata os conhecimentos religiosos a partir de pressupostos éticos e científicos, sem privilégio de nenhuma crença ou convicção. Abordando esses conhecimentos com base nas diversas culturas e tradições religiosas, sem desconsiderar a existência de filosofias seculares de vida.
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